O Congresso Nacional retomou o debate sobre a reforma administrativa, uma das pautas mais sensíveis e aguardadas do funcionalismo público. A proposta, relatada pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), reúne uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), um projeto de lei ordinária e um projeto de lei complementar, com o objetivo de modernizar o serviço público, reduzir distorções salariais e tornar o Estado mais eficiente.
Entre os principais pontos estão a criação de uma tabela única de remunerações, avaliações periódicas de desempenho com possibilidade de perda do cargo, bônus por produtividade e limites para benefícios e progressões automáticas. Também estão previstos planos estratégicos obrigatórios para governos eleitos e incentivos à digitalização e interoperabilidade de sistemas públicos.
Apesar do discurso de eficiência, entidades representativas de servidores reagiram com críticas, alegando que o texto abre brechas para a precarização das carreiras e a redução de garantias históricas, como a estabilidade e a irredutibilidade de vencimentos.
No governo federal, o tom é de cautela. A ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, já afirmou que há pontos de convergência com a proposta debatida no Congresso, mas ressaltou que a estabilidade dos servidores é inegociável.
Debate constitucional e institucional
Para o professor Antonio Carlos de Freitas Junior, doutor em Direito Constitucional pela USP, o desafio da reforma vai além da política. Ele alerta que a tentativa de uniformizar princípios administrativos entre os Três Poderes e as diferentes esferas federativas pode comprometer a autonomia e a separação dos Poderes, pilares do Estado brasileiro. “Ao propor uma uniformização ampla, corre-se o risco de reduzir a autonomia e nivelar regimes jurídicos que foram constitucionalmente pensados como distintos”, explica o jurista.
Freitas Junior pondera que a reforma precisa equilibrar coordenação e homogeneização. “O modo como o Executivo deve gerir seus servidores não é necessariamente o mesmo que o Legislativo ou o Judiciário. Uma uniformização excessiva pode gerar ingerência de um Poder sobre outro”, observa.
Riscos jurídicos e resistência política
Sob a ótica do direito administrativo, a advogada Deborah Toni avalia que o avanço da proposta depende de consenso dentro da base governista e de negociações com o funcionalismo. “Sem acordo, a resistência tende a crescer. Bancadas de esquerda e frentes de servidores já se mobilizam contra pontos sensíveis, como avaliação, teto de gastos e progressão na carreira”, afirma.
Ela também alerta para riscos jurídicos no modelo de avaliação de desempenho e remuneração variável. “Critérios objetivos, garantias de contraditório e instâncias revisoras devem estar em lei complementar. Caso contrário, há violação aos princípios da legalidade e da impessoalidade”, destaca.
Toni defende que a estabilidade do servidor continue sendo uma cláusula essencial. “Ela protege o servidor de pressões políticas e assegura a continuidade e impessoalidade da administração. Mudanças devem respeitar regras de transição claras e não confiscatórias.”
Principais pontos da proposta
Avaliação e produtividade
- Servidores serão avaliados periodicamente; desempenho insuficiente pode levar à perda do cargo.
- Criação de bônus anuais por resultados e metas cumpridas.
Digitalização e gestão estratégica
- Transformação digital com interoperabilidade de sistemas e identificação única nacional.
- Governos deverão publicar planos estratégicos de metas e resultados.
Corte de privilégios e gastos
- Tabela única de salários por ente federativo.
- Férias limitadas a 30 dias e teto de 10% da remuneração para benefícios.
- Extinção da aposentadoria compulsória como forma de punição.
Carreiras e concursos públicos
- Concursos deverão seguir diagnóstico da força de trabalho.
- Carreiras terão no mínimo 20 níveis, com progressões mais longas.
- Apenas 5% dos cargos poderão ser comissionados, metade deles ocupados por servidores efetivos.
A retomada da reforma administrativa reacende um debate antigo no país: como modernizar o Estado sem fragilizar o serviço público. O texto ainda precisará enfrentar longas negociações no Congresso, com forte pressão de corporações, sindicatos e partidos de oposição.
Enquanto isso, o governo tenta equilibrar o discurso de responsabilidade fiscal com a defesa da valorização dos servidores — um dos temas mais sensíveis da atual legislatura.