14/01/2017 20h23
O cinema brasileiro não dá bola para a crise
Cinema
A maioria dos brasileiros lembrará de 2016 como o ano de crise política e recessão econômica que há tempos o país não vivia. Mas os que procurarem ângulos alternativos vão olhar para ele e poder dizer: o Brasil se consolidou no audiovisual. A indústria que diz respeito às produções para cinema, TV e outras plataformas de exibição de filmes, séries e afins flui em ventos contrários e é, hoje, uma potência que resiste sólida aos altos e baixos da economia.
Nos dois últimos anos, o país mergulhou na mais profunda recessão (dois anos seguido com queda de 3,5% do PIB), e ainda assim, em 2016, o audiovisual celebrou cifras de crescimento. O ano que passou aponta para uma expansão de mercado de mais de 10%, cerca de 140 filmes brasileiros lançados (contra 129 em 2015) e um aumento significativo no número de ingressos vendidos (176 milhões, contra 173 milhões em 2015 – e 90 milhões em 2002), de acordo com o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA). Na TV paga, os resultados são ainda melhores, com um incremento da programação brasileira independente e a abertura de novas janelas de exibição de seus produtos.
Os números que escancaram essa realidade não são mero acaso. Os profissionais da área celebram as políticas públicas dos últimos 15 anos. Segundo eles, é o que ajuda o país a garantir um presente sadio para uma atividade que emprega diretamente aproximadamente 200.000 pessoas e, só em 2014, adicionou à economia 0,43% do PIB nacional, ainda segundo o OCA. Nem mesmo os velhos desafios, que persistem com novas caras, são capazes de dispersar o otimismo – ainda que com cautela – que paira no ar.
Um dado consolidado dá a dimensão do salto do setor na última década e meia. Em 2014, ele gerou 24,5 bilhões de reais, contra 8,7 bilhões em 2007, o que representa uma expansão de 9% do mercado, de acordo com pesquisa da Agência Nacional do Cinema (Ancine). A título de comparação, no mesmo ano (2014), a indústria automobilística resultou em 22,74 bilhões de reais de faturamento, segundo a Ancine. E o cinema ainda tem a vantagem de não ser poluente.
Como é possível que o audiovisual navegue bem em meio à tempestade econômica e política? Os motivos elencados pelos profissionais ouvidos pelo EL PAÍS são vários, mas antes de analisá-los muitos destacam que, ao contrário do que se pensa, crises podem dar certo impulso ao cinema. “Historicamente, o cinema de comporta bem em momentos de recessão. Ver filmes termina sendo uma opção de lazer mais barata”, diz Laércio Bognar, sócio da Vitrine, distribuidora focada em longas-metragens nacionais independentes que vem crescendo nos últimos anos – agora com o objetivo de incluir obras de médio e grande porte no catálogo. Márcio Fraccaroli, da Paris Filmes, concorda: “O cinema é, além do mais, fuga para as pessoas da chatice do noticiário”, considera o presidente da distribuidora líder de mercado no Brasil, com 80% de market share.
Mas o que de fato explica o pulo do gato é o apoio do setor público. Nos últimos 15 anos, é consenso que o país trabalhou para a construção de políticas públicas sólidas para o audiovisual nacional. O esforço começou com a criação da Ancine, em 2001. Depois de estabelecido esse primeiro marco regulatório, veio a criação do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) em 2008, a partir do recolhimento da Condecine – tributo pago para veiculação, produção, licenciamento e distribuição de obras audiovisuais que é revertido para o próprio setor. O fundo, que não opera a fundo perdido, existe em paralelo às leis de incentivo que fomentam a produção nos diferentes patamares estatais (municipal, estadual e federal). Enquanto elas minguaram neste ano por conta da recessão, ele cresceu. Em 2013 e 2014, seus recursos somaram 1,2 bilhão de reais. Em 2015, o montante saltou para 630 milhões e, em 2016, para 730 milhões.
“O FSA é o que faz o setor não viver a crise. E é importante lembrar que não se trata de dinheiro incentivado, mas de um fundo de investimento – e um dos mais caros do mundo – de onde você pega dinheiro e depois tem que pagar de volta”, explica a produtora Mayra Lucas, da Glaz Entretenimento. Para Mariza Leão, a grande vantagem do FSA é uma diversificação financeira que ela chama de “revolução”. “O fundo tem atualmente linhas diversas e estimula e fomenta também a produção regional, evitando a concentração da produção”, diz a produtora à frente da Morena Filmes, que já foi presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Audiovisual do Rio (SICAV) e diretora da Riofilme.
Outra revolução veio com a criação de chamada lei da TV paga, a 12.485, de 2011, lembra Mariza Leão. Ao obrigar os canais a programarem um mínimo de horas de conteúdo nacional criado por produtoras independentes, a lei profissionalizou o setor, estimulando o pleno emprego na área. Por outro lado, permitiu o que é óbvio, mas ainda faltava: que espectadores brasileiros assistissem a mais obras brasileiras, produzidas aqui e com qualidade. “Minha geração só produzia para cinema. Hoje, muita gente passou a olhar para a produção de TV como algo desafiador e importante para as suas carreiras”, afirma a produtora. Mesmo satisfeita, ela ressalta: “Agora falta conquistar a TV aberta”.
Como era de se esperar, o impulso da TV retroalimenta o cinema. O know-how adquirido pelos profissionais nas várias etapas da produção de conteúdo é aplicado em filmes, e a roda da cadeia produtiva gira com mais harmonia, consolidando a indústria. É o que opina o consultor especializado em economia criativa Christian de Castro. “Aí, sim, cria-se mercado. Até então era só o cinema. O cinema é bom, mas é alta costura”, diz Castro, que é consultor e sócio da Zooks Consultoria e Comunicação.
Acostumado a fazer a ponte de ligação entre empreendedores (produtoras) e investidores, Castro vê no audiovisual brasileiro um “enorme potencial” que se desenvolve também à medida em que entra dinheiro privado na equação. Para ele, “é preciso ter empresas preparadas para produzir em escala industrial”, e isso acontece graças aos investimentos. “De 2006 para cá houve um incremento de venture capital [investimentos de risco] no país. É uma geração de investidores e fundos que passou a olhar para atividades de base tecnológica, como biotecnologia, farmácia e os vários ramos da indústria criativa. Aí se deu a ligação entre a propriedade intelectual e o investimento”, esclarece. Até 2006, segundo Castro, o único investimento privado conhecido no mercado era o do banco Icatu, na produtora carioca Conspiração. Hoje, há investidores privados em pelo menos mais seis empresas do setor: Gullane, Bossa Nova Filmes, Glaz Entretenimento, Oca Animation, AfroReggae Audiovisual e Downtown Filmes.
Com o fortalecimento das produtoras, em muitos casos com dinheiro privado, o Brasil passou a criar produtos sólidos, que primeiro estabelecem público aqui e depois passam a ser exportados. É o caso de séries de animação infantis como Galinha pintadinha, dos produtores Juliano Prado e Marcos Luporini, uma das marcas licenciadas que mais faturam no mundo, e do O show da Luna, da TV Pinguim, já exibida em mais de 70 países. Mas também de conteúdos adultos, de ficção, como a série As canalhas, da Migdal Filmes, exibida desde 2013 no GNT e que terá uma versão produzida pelo ator Ben Stiller para o serviço de streaming americano Hulu com o título de Bitches.
A presença audiovisual brasileira no exterior é bem-vinda, porque sinaliza a boa forma da criatividade do setor e também seu amadurecimento do ponto de vista econômico. No cinema, ela se dá através das coproduções internacionais, que o país passou a estimular com acordos bilaterais e linhas específicas do programa Brasil de Todas as Telas, da Ancine. E que muitos produtores buscam também por conta própria, ancorados em fundos internacionais sobretudo europeus e latino-americanos, como o Hubert Bals (do Festival Internacional de Cinema de Rotterdam) e o Ibermedia. Para a produtora Karen Castanho, da Biônica Filmes, a maior vantagem de coproduzir “é juntar talentos”. “Isso torna os projetos mais globais em sua essência, o que só nos faz ganhar sob muitos pontos de vista”. Outra coisa, ela destaca, é “estar preparado para ter alternativas caso aconteça algo internamente”.
El País












