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sábado, 2 de agosto, 2025
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O lado oculto dos rituais andinos: tráfico de fetos de lhamas chega ao Brasil

Autoridades alertam para risco sanitário com entrada ilegal de fetos de lhamas. Corumbá registra aumento de apreensões de fetos desde 2024

Empalhados ou mumificados, fetos de lhamas têm sido encontrados com cada vez mais frequência na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, mais especificamente em Corumbá, cidade a 429 km de Campo Grande. Considerados sagrados por povos indígenas andinos e usados em rituais espirituais, os itens chamaram a atenção das autoridades brasileiras não apenas pelo aspecto cultural, mas pelo risco sanitário que representam.

Desde 2024, foram apreendidos mais de 400 fetos com estrangeiros tentando entrar ilegalmente no país. Antes disso, não havia registros significativos. A maioria das apreensões ocorre durante fiscalizações de rotina em ônibus que fazem o trajeto Corumbá–São Paulo, onde os fetos seriam vendidos no mercado esotérico por até R$ 500 cada, segundo depoimentos colhidos pela Receita Federal.

Rituais milenares e a simbologia da Pachamama

De acordo com o antropólogo Alyson Matheus de Souza, que pesquisa as práticas culturais na fronteira entre Brasil e Bolívia, os fetos de lhamas são tradicionalmente usados em rituais andinos como oferenda à Pachamama, a deusa da terra e da fertilidade. “Eles representam força vital e são oferecidos como presente espiritual à terra para pedir proteção, saúde e prosperidade”, explica o pesquisador.

As cerimônias incluem, além dos fetos, itens como folhas de coca, lãs coloridas, bebidas alcoólicas e esculturas de açúcar. Os objetos são queimados ao final da celebração. O uso dos fetos está enraizado em tradições indígenas anteriores à colonização espanhola. Eles costumam ser retirados de fêmeas que morreram naturalmente ou foram abatidas para alimentação, e não envolvem animais adultos vivos.

Apesar da forte simbologia religiosa e cultural, o transporte desses itens para o Brasil é ilegal e traz riscos.

Alerta sanitário e destino: incineração

As apreensões acenderam um sinal de alerta no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), que atua nas fronteiras em conjunto com órgãos como a Receita Federal, Polícia Federal, Anvisa e PRF. Segundo o auditor fiscal agropecuário Clovis Baseggio, o transporte de animais mortos sem controle sanitário representa grave ameaça à saúde pública e ao agronegócio nacional.

“Esses materiais podem carregar patógenos perigosos, como os causadores da febre aftosa e da brucelose, ambas zoonoses com grande impacto na produção agropecuária”, afirma Baseggio. O auditor detalha que, ao serem apreendidos, os fetos são imediatamente encaminhados para incineração controlada, com apoio do Mapa.

Ele também destaca a inexistência de qualquer acordo entre Brasil e Bolívia para importação ou comércio desse tipo de produto. “Não há garantias sanitárias. Os fetos muitas vezes apresentam larvas e odor pútrido, o que eleva ainda mais o risco. Além disso, há relatos de práticas como a indução de aborto nas lhamas, o que fere princípios de bem-estar animal”, explica.

Corumbá: ponto crítico da fronteira

Corumbá se tornou um dos principais pontos de entrada do material ilegal. A cidade faz fronteira seca com Puerto Quijarro e Puerto Suárez, na Bolívia, e o trajeto até o Brasil é feito por uma única via — a rodovia Ramon Gomes, continuação da BR-262.

A região é conhecida por ser rota de tráfico, contrabando e descaminho. Em julho de 2025, a Receita Federal registrou a primeira apreensão do ano: 25 fetos foram encontrados escondidos em sacos com produtos agrícolas, dentro de um ônibus. Em 2024, 175 fetos haviam sido apreendidos e incinerados em apenas uma semana.

Apesar da reincidência, os responsáveis não são presos, e o caso ainda não conta com uma investigação formal estruturada. A Receita Federal classifica as ações como parte de uma atividade clandestina mais ampla, envolvendo transporte irregular de pessoas e bens.

Herança cultural versus legislação sanitária

O caso evidencia o choque entre tradições culturais legítimas e os limites da legislação sanitária e alfandegária brasileira. Especialistas pedem cautela e respeito às crenças dos povos indígenas andinos, mas reforçam que a entrada irregular desses itens representa um risco concreto.

Até o momento, os ministérios da Saúde e da Cultura da Bolívia não se manifestaram sobre medidas sanitárias ou sobre o comércio ilegal dos fetos fora do território boliviano.

Enquanto isso, no Brasil, o aumento das apreensões indica que o tema deve continuar sendo foco de vigilância — especialmente em regiões de fronteira onde o sagrado e o ilegal se encontram no mesmo caminho.

*com informações G1

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