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terça-feira, 23 de abril, 2024
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Olor de camalote

Com uma produção literária intensa, o poeta foi autor de obras como Areôtorare: poemas boróros e Sarobá ainda muito jovem, antes dos 20 anos, na vanguarda do Modernismo brasileiro

*Rosildo Barcellos

Eu sou o poeta desconhecido (…)

Trago comigo, a minha alma presa,

A inútil esperança da vitória

A bondade de minha gente

Fulgura, cintilante nos meus feitos,

Rola estuante de harmonia, nos meus gestos

E floresce, orvalhada de luz, nas minhas atitudes.

Busco sem cessar, dia e noite,

Numa luta generosa e boa,

Luz para a razão, pasto para a inteligência.

Eu sou o poeta desconhecido.

Não sei o destino que me espera… ( Matos 1935)

Quem já teve a oportunidade de ver “singrar” suavemente nas correntes leves do Rio Paraguai a exuberância do camalote, não esquece sua imagem. E essa singularidade traz a mente uma figura ímpar na inteligência do nosso estado e que se consubstancia na própria razão de ser do contexto, posto que o poeta e articulista Lobivar Matos deixou uma inovação temática e histórico-literária apresentando uma poesia regional que abarcava o povo e suas razões. Também deixou em sua obra um retrato dos espoliados, da ralé ( como alvitra o vicejante Hermínio Roa), que entre catacreses e sinestesias pincelava poemas livres e despojados de metrificações. Em Areôtorare (1935) fez representar a denúncia ante a catequização e dominação dos bororos perpassando a exploração do trabalhador, índio e negro; e se alavancou com o manejo genial das metáforas, na obra: Sarobá, do ano seguinte (1936) se tornando um autor construtor, de um texto peculiar, e altamente representativo da cultura pantaneira.

Assim é a tessitura poética de Lobivar Matos, filho de Manoel Augusto de Matos e Brasília Nunes de Matos nascido em Corumbá a 12 de janeiro de 1915, foi amigo na infância do imortal poeta Manoel de Barros. Estudou no Ginásio Municipal em Campo Grande, hoje capital de Mato Grosso do Sul e terminou o Bacharelado em Ciências Jurídicas na Faculdade Nacional da Universidade do Brasil em 1941. O próprio poeta comentava que considerável parte de seus poemas realmente abordavam temáticas regionais e por isso eram simples e muito humanos com cheiro de cogitações íntimas e introspectivas; mas abarcando sua vida, sua história, seus amores.

“O Sol é um martelete de Ouro perfurando o espaço” assim o poeta traz as leis científicas para o sonho do trabalhador que espera um melhor porvir numa coalescência entre o real e o poético aonde o tempo dialoga com o momento na voz do povo oprimido. Ademais, ao contemplar a sabedoria da natureza e a efervescência da vida, ousamos sonhar e assim ousei escrever sobre o ignescente escritor que faleceu aos 32 anos, até porque em algum momento todos nós nos encontramos, nas letras desconhecidas. E assim ao adentrar as portas do centenário de seu nascimento, nada mais justo que celebrar Lobivar Matos, que se intitulou o “poeta desconhecido”. Se tornando o precursor do pré-modernismo no estado. Fato que pode ser exemplificado analisando as letras de seu primeiro poema, constante em Areôtorare, (livro de estreia), intitulado “Destino do Poeta Desconhecido”. Ele, como se esperava, não fala de seu nascimento, mas vislumbra no futuro a sina de quem nascera para a poesia com gosto de guavira, olor de camalote e da saudade do casario do porto.

*Articulista

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