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quinta-feira, 25 de abril, 2024
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A fome, que não é uma doença, se transformou em epidemia em Campo Grande

A fome dói, e não há remédio que passa essa dor, apenas a comda, somente um prato cheio de alimento. A fome incomoda, tira a concentração e te leva ao desespero, faz bater de porta em porta na súplica por um pedaço de pão e um copo de leite. Só quem já experimentou a fome, a miséria, sabe descrever o sentimento da humilhação. A fé não enche a barriga, mas o milagre lhe proporciona uma cura, ainda que passageira.

Não faz muito tempo que um senhor, de idade não tão prolongada, bateu a porta de casa na carência de comida. Os olhos rebaixados escondiam-se no tapete da vergonha; tinha medo de ser confundido com um ladrão, tinha medo de ser maltratado por aqueles que desfrutavam de um almoço cheiroso.

Mas a dor da barriga que não sentia o gosto do alimento há dias o fez peregrinar pelas ruas do bairro Jardim das Cerejeiras, em Campo Grande, atrás de qualquer coisa para mastigar na boca e silenciar o ronco do estômago.

No ato de pouca conversa, entreguei-lhe várias fatias de um pão de forma esquentados antes numa chapinha de lanche com manteiga e muito carinho – necessário compartilhar isto com todos. Era pouco, mas o suficiente para aquele momento pelo qual passava o desconhecido que, satisfeito com a resposta, partiu para a sua casa. O remédio para a fome é a comida!

Um caos do lado de fora

Há anos o Brasil não tem testemunhado o aumento no número de pessoas passando fome e pedindo dinheiro nas esquinas. Aumentou o desemprego, aumentaram os favelados, aumentou o preço da comida. Para quem não tem de onde tirar o sustento digno, a atitude mais fácil – ainda que seja errada – está em roubar. É esse cenário preocupante tem despertado a atenção das entidades jurídicas brasileiras, que não sabem como lidar com o chamado ‘furto da sobrevivência’.

Análise feita pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul mostra que, no período de um ano, 32 assistidos campo-grandenses passaram por audiência de custódia por terem cometido o furto de alimentos. O levantamento foi elaborado pelo Núcleo Criminal (Nucrim), que tem a coordenação do defensor público Gustavo Henrique Pinheiro Silva.

A fome, que não é uma doença, se transformou em epidemia em Campo Grande
Coordenador do Nucrim, defensor público Gustavo Henrique Pinheiro Silva.

Segundo ele, de março de 2021 a março de 2022 foram realizadas cerca de 3 mil audiências de custódia no Fórum de Campo Grande, dos quais 580 eram decorrentes de prisões pelo crime de furto, que é a subtração de objetos sem o uso de violência ou grave ameaça à pessoa. Mais importante destacar ainda neste balanço é que 32 destes casos estavam relacionados ao furto de alimentos.

De acordo com a Defensoria Pública, na maioria das vezes, tais furtos ocorreram em supermercados, onde o assistido era flagrado por funcionários ou sistema de vigilância eletrônico. “Os números acendem um alerta, principalmente, porque as audiências de custódia que tiveram como pano de fundo os furtos de gêneros alimentícios acabam por representar 1 % do universo de casos criminais submetidos ao crivo judicial”, pontua.

“Embora não seja possível afirmar que houve uma elevação do número de ocorrências relativas a furtos de alimentos em relação aos anos anteriores – em especial porque as estatísticas compreendem o período de 2021 e 2022 (portanto, já durante as consequências econômicas decorrentes da pandemia) – os números levantados chamam a atenção e podem ser indicativos de que a crise financeira se faz notar, também, sob o aspecto dos furtos famélicos”, destaca o coordenador.

Além disso, conforme o defensor, os casos que chegam até as audiências de custódia representam apenas uma fração deste tipo de furto, isto porque é comum a situação ser resolvida no próprio local. Exemplo disso, é quando a equipe de segurança do estabelecimento comercial acaba “forçando” o pagamento pelos produtos e depois “libera” a pessoa envolvida.

Dos dados obtidos dos 32 casos de furtos de alimentos, 27 custodiados tiveram a liberdade provisória concedida já na audiência de custódia, enquanto os demais, embora com a prisão preventiva decretada, obtiveram a liberdade provisória pouco tempo depois. Em apenas 4 deles as pessoas declararam estar empregadas, enquanto os demais se dividem em desempregados ou pessoas em situação de rua

Falta mistura no prato do brasileiro

Os números foram divulgados nesta sexta-feira (13). Conforme consta, dos furtos que envolviam alimentos, o de carne (em especial carne bovina) foi o mais comum entre os produtos, sendo que dos 32 casos, ao menos 20 tinham a carne como objeto envolvido. “Na maioria dos casos analisados, as carnes sequer eram tidas como cortes mais ‘nobres’, ou seja, em algumas ocorrências envolviam ‘pescoço de frango’, ‘coração bovino’, ‘charque’, ‘coxão duro’, entre outros”, detalhou o coordenador do estudo.

Estão roubando para comer

O desespero pela comida do dia a dia faz as pessoas que antes nunca praticaram crime algum se humilharem na arte da bandidagem para conseguir uma refeição. Em um dos casos apurados pela Defensoria Pública de MS está o de “Maria” (nome fictício), de cerca de 30 anos e sem antecedentes criminais até o mês de abril de 2021, quando foi presoa por furtar duas peças de carne suína e uma porção de muçarela em um mercado da Capital, avaliados em cerca de R$ 200,00.

De acordo com Maria, embora já tenha trabalhado como empregada doméstica, após ficar desempregada tentou sobreviver como vendedora de água e salgados. Ela já estava desempregada há 8 meses e, tendo quatro filhos de 6, 8, 11 e 19 anos, acabou furtando os objetos por necessidade. Após um dia presa, foi solta em audiência de custódia.

O caso dela não é isolado, ainda conforme aponta a Defensoria Pública, que citou o caso de “Joana” (também de nome fictício), de 30 anos e mãe de uma criança de 5 meses, ainda em amamentação, e que foi presa pela primeira vez na vida em maio de 2021, após furtar 2 kg de alcatra, um pacote de pescoço de frango, 100 gramas de salame, 1 kg de mandioca, 1 coentro, 2 leites achocolatados em um mercado de Campo Grande.

A assistida relatou que agiu para prover alimento para sua própria sobrevivência, sendo que foi solta um dia após sua prisão em flagrante. Já no caso de “José”, de 57 anos e pai solteiro de um adolescente de 15 anos, preso pela primeira vez ao furtar de um estabelecimento 3 quilos de carne avaliados no total de R$ 130,00. Desemprego há dois meses, agiu pois não tinha o que comer em casa. foi solto na audiência de custódia e, posteriormente, o próprio Ministério Público pediu o arquivamento do inquérito policial.

“André”, 40 anos, envolveu o furto de um pacote de café, um pacote orégano, um litro de óleo, 300 gramas de alho, 4 quilos de coração bovino, e 3 quilos de carne tipo lagarto e capa de filé, totalizando R$ 360,00. Segundo relatou, estava passando por necessidade e igualmente foi solto em audiência de custódia, sendo certo que também teve o inquérito policial arquivado a pedido do MP.

“Mário”, de 34 anos, preso em flagrante pelo furto de 3 pacotes de biscoito e 4 pacotes de sucos, avaliados em apenas R$ 12,00. Ele teve sua liberdade provisória concedida durante a audiência de custódia, e o seu caso não chegou a ser denunciado ao Juízo competente, pois o órgão acusador também pediu o arquivamento do Inquérito com fundamento no princípio da insignificância.

A fome não é uma doença, mas deve ser curada com o alimento. Você pode ajudar fazendo a doação para entidades que atuam na causa social, como a Sociedade São Vicente de Paulo, ligada a Igreja Católica, e que atende famílias carentes em toda Campo Grande, ou qualquer outra instituição de sua confiância.

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